Botecos sem fronteiras
Fico um pouco ressabiado quando escuto alguém se referir a um determinado estabelecimento como sendo um "boteco de bairro".
A menos que eu esteja enganado, todos os botecos, cantinas, farmácias, pet shops, hamburguerias gourmet, sex shops e as boas lojas do ramo ficam localizados em bairros – ok, pode ser que estejam no centro da cidade e há quem diga que centro não é bairro, mas essa é outra discussão – logo, podem ser considerados "cantinas de bairro", "pets shops de bairro" e assim por diante.
Mas eu acho que consigo entender o que se quer dizer com esse "de bairro". Para mim, a expressão evoca sentimentos mais primitivos, como diria o ex-nobre deputado, porque me fazem lembrar minha quebrada, minha rua, meus amigos, minhas origens.
Houve um tempo em que era possível passar no boteco antes de voltar pra casa depois de um dia de trabalho, pedir uma cerveja e uns bolinhos de bacalhau e pendurar a conta, para acertar no dia 5. O devedor não falhava, para não perder o privilégio, e o dono do bar pagava a cozinheira em dia.
Ou, como ocorria no Bar do Luiz (Rua Augusto Tolle, 610, Mandaqui), o próprio freguês recebia do dono do boteco lápis e papel. Assim, marcava o que iria consumir, afinal, o Luiz tinha de preparar a batida, a dona Idalina tinha de fritar mais bolinhos e mais torresmo, o Edu (filho do Luiz e gerentão da casa) tinha de colocar mais cerveja na geladeira, montar mais mesas na calçada, fazer "a social". Mas o Bar do Luiz virou Bar do Luiz Fernandes, cresceu, felizmente ganhou o mundo, ficou famoso e o Edu já não daria conta de tudo sozinho – hoje comanda um time de garçons dos bons e vai de mesa em mesa para receber as contas pagas com cartão. O olho do dono é que engorda o gato e ele sabe disso.
Num boteco de bairro, é possível ver o trabalho de diversas gerações atrás do balcão. Eu tinha meus 13 ou 14 anos e lembro que o Georginho, pai do Daniel Caixote, um dos meus melhores amigos, costumava passar no Bar do Jô (Rua Conselheiro Dantas, 479, Pari) nas noites de sexta para tomar um chopinho e comer uma porção de codorna ou de mariscos ao vinagrete – tudo preparado e servido pelo próprio Jô. Quase três décadas depois e com dois salões a mais, o Bar do Jô tem à frente, sim, o Jô, mais o escudo dos filhos Taís e Alan. E o Daniel Caixote trocou o refri pela cerveja. Sucessão familiar bem-sucedida é isso aí.
Onde mais, a não ser num boteco de bairro, você se senta ao balcão e é cumprimentado – com um aperto de mão – pelo anfitrião, pelos chegados e até por desconhecidos? Aconteceu comigo quando fui ao finado Bar do Zé Ladrão (que funcionou por mais de 25 anos na Rua Apinajés, 478, Perdizes). Acomodei-me em uma banqueta e o vizinho estendeu-me a mão, assim como o Zé Ladrão e todos que foram chegando ao bar – exceção feita ao Fred (1980-2014), o papagaio de estimação da casa, que morreu aos 24 anos em decorrência de problemas respiratórios. Há quem jure que foi de tristeza e desgosto, depois de ter sido recolhido pela polícia ambiental.
Um boteco de bairro, dos bons, expande fronteiras nem que seja para o bairro vizinho. O Peru's Sandubas (Rua Cajuru, 1164, Belém), por exemplo: mesmo depois da mudança da rua Júlio de Castilhos para o endereço atual, em que o salão ganhou uma cara de sucursal do Graal, continua um sucesso. Ali, quem não liga para a cara enxerga o coração do bar, no caso, o balcão logo à direita da entrada, onde é preparado e servido o melhor churrasquinho do mundo, temperado com um inimitável molho de repolho. Além dos belenenses, vem gente da Mooca, do Tatuapé, da Vila Maria e até do Jardim Paulista – sou testemunha! – para comer o sanduíche.
Naquele balcão, a gente se sente em casa.
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