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Boteclando

A gloriosa história da família Almeida

Miguel Icassatti

20/06/2018 23h36

Torresmo do Mocotó / Foto: Patricia Skvira

A história da gastronomia paulistana é uma história de famílias. Entre tantos clãs – como o dos Tarallo da pizzaria Speranza ou os Kopenhagen, da chocolateria homônima –, o dos Almeida tem uma trajetória que corresponde fielmente à origem etimológica desse sobrenome: Almeida vem do árabe e significa "conquista gloriosa".

No caso dos Almeida, a conquista dos estômagos paulistanos começou pela Zona Norte, quatro décadas e meia atrás. Vindos do vilarejo de Mulungu, no agreste pernambucano, os irmãos José, Gilvan e Gercino abriram a Casa do Norte Irmãos Almeida, na Vila Aurora, região do Tucuruvi, em 1973. Como tantas outras, a loja vendia toda sorte de farinhas, manteiga de garrafa, jabá, pimentas e produtos regionais nordestinos – aliás, nunca entendi porque a referência a esse tipo de mercadinho esbarra num equivocado desvio geográfico.

Um ano depois, os irmãos abriram mais uma na Vila Medeiros, que ficou sob a responsabilidade de José. Em 1976, veio a unidade do Lauzane Paulista, da qual Gercino foi o escalado para tomar conta.

Com o bolo crescido e as fatias igualmente divididas, os irmãos decidiram seguir adiante com as três casas, mas cada um por si. A bem da verdade, em 1974 José Almeida já havia inaugurado um boteco na Vila Medeiros, vizinho à sua filial, e que viria, três décadas mais tarde, se tornar o ótimo e sempre lotado Mocotó.

Ainda nos anos 1970, Gercino passou a servir no Lauzane um caldo que misturava mocotó e favada. Criou, assim, a receita que passaria a batizar o boteco no qual o seu endereço iria se transformar: O Mocofava.

Gilvan, o terceiro irmão, só mudaria de ramo – e de endereço – em 2007, quando inaugurou o bar Nação Nordestina, na Vila Maria.

Atualmente, as três casas são comandadas pelos filhos de Gilvan, Gercino e José: Luciano (do Nação Nordestina) é primo de Anderson (do Mocofava), que é primo de Rodrigo (Mocotó), que é primo de Kelson, que é filho de Geraldo e primo de Janse. Esses três últimos nunca tiveram nada a ver com a história. Quer dizer, entraram nela mais tarde.

Inspirados no sucesso dos tios e primos, Kelson abriu o simplíssimo Maria Farofa em 2012, na Vila Guilherme, e Janse, que trabalhou no Mocotó, é o dono do Barnabé, que funciona desde 2005 no Parque Edu Chaves, de frente para uma praça.

De todos os Almeidas, é Rodrigo o maior responsável por levar para além das fronteiras da ZN a fama da boa culinária nordestina servida pela família. No comando da cozinha do Mocotó há quase duas décadas, ele toca o Esquina Mocotó – restaurante, por assim dizer, de uma culinária mais autoral –, supervisiona o Mocotó Café, no Mercado de Pinheiros, e dá expediente também no Balaio IMS, o movimentado restaurante aberto em 2017 no andar térreo da nova sede do Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista.

Voltando à Zona Norte, é legal observar que o DNA almeidiano está presente no cardápio de todas as casas do clã.

Baião-de-dois do Mocotó / Foto: Patricia Skvira

Estão em todas o torresmo de barriga, o baião-de-dois, o caldo de mocotó e o mocofava – devidamente creditado no menu do Nação Nordestina, a R$ 21,00, e no do Mocotó, a partir de R$ 14,90, como sendo uma criação de Gercino Almeida.

Os famosos dadinhos de tapioca (R$ 15,90 a porção com seis) do Mocotó ganham variações no Nação Nordestina (ali listado como "quadradinho de tapioca") e no Mocofava, onde se espicham em deliciosos e longilíneos palitos.

O baião-de-dois servido em cada um dos bares parece ter saído de uma mesma boa e velha panela – é tarefa difícil cruzar os talheres.

Além desses pratos, a boa oferta de cachaças é algo comum a todas as casas, que, sim, preservam características próprias: como a simplicidade do ambiente do Maria Farofa, o entorno quase interiorano do Barnabé, o sossego do Mocofava, o burburinho do Mocotó e o alto astral do Nação Nordestina. Há uns anos, almocei ali em um dia de São João. Lá pelas tantas, um trio de forró pé-de-serra começou a tocar Asa Branca, e o salão e a calçada ficaram pequenos.

Imagine a festa que vai ter em Mulungu neste domingo. Viva São João!

Vai lá:

Balaio IMS. Avenida Paulista, 2424 (Instituto Moreira Salles).

Barnabé. Praça Comandante Eduardo de Oliveira, 147, Parque Edu Chaves.

Esquina Mocotó. Avenida Nossa Senhora do Loreto, 1100, Vila Medeiros.

Maria Farofa. Rua Maria Cândida, 641, Vila Guilherme.

O Mocofava. Rua Ires Leonor, 237, Lauzane Paulista.

Mocotó. Avenida Nossa Senhora do Loreto, 1100, Vila Medeiros.

Mocotó Café. Mercado Municipal de Pinheiros.

Nação Nordestina. Rua Kaneda, 894, Vila Maria.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.