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Boteclando

Ensaio sobre a linguiça

Miguel Icassatti

19/07/2018 21h37

Chorizo criollo do La Cabrera / Foto: divulgação

Uma propaganda de uma marca de cutelaria veiculada atualmente na TV resume, com boa dose de humor, a saga dos churrasqueiros amadores. Brasa que teima em não pegar, pedaço de carne esturricado… quem nunca?

Todo churrasqueiro que se preze – e que é escalado para abater a fome de um bando, afinal, ninguém faz um churrasco para come-lo sozinho – sabe que a linguiça é a primeira a ir para a grelha, decerto porque ficará pronta rapidamente. E se tiver criança no churras, então, sucesso garantido.

Bendito sejam os romanos, os espanhóis ou os portugueses, os quais, reza a lenda, foram os prováveis inventores da linguiça. A inspiração para os romanos, 2.000 anos atrás, teria sido a descoberta de mais uma forma de armazenar comida: enfiar nas tripas do animal os pedaços de carne temperados com gordura e ervas. Os povos germânicos e outras civilizações também lançaram mão do expediente nos séculos seguintes e criaram suas versões, como o fizeram os espanhóis, logo depois do descobrimento da América.

Levaram daqui a pimenta, com a qual prepararam a páprica, que por sua vez usaram para temperar pedaços de porco. Com essa mistura encheram tripas e criaram o chouriço e suas variações (como a morcilla, por exemplo).

Meu jantar de despedida de férias ontem, em Buenos Aires, começou com um espetacular chorizo criollo, na La Cabrera, que, para mim, é a melhor parrilla da capital argentina, ao menos entre as famosas, a saber, Don Julio, La Brigada e Cabaña Las Lillas. Vem à mesa em generosa porção – para ser compartilhada, a menos que o comensal queira cometer o pecado de queimar a largada antes do asado de tira, do ojo de bife, da entraña… – e é feita com uma mistura de carnes moídas de boi e de porco, alho, ervas, vinagre de uva ou vinho e toucinho. E assada na brasa, é claro.

Fez-me lembrar as linguiças que meus tios enchem lá no Mato Grosso do Sul, com carne de boi, embora visualmente saibam à morcilla, também difundida pelos espanhóis, e que mescla tripa, carne e sangue coagulado de porco, além de arroz. Morcilla boa tem no São Cristóvão, botecaço que serve bom chope, é revestido com fotos de esquadrões de futebol na Vila Madalena, e resiste em meio ao purgatório de bares ruins que virou aquele quarteirão da rua Aspicuelta.

Outra receita histórica de linguiça, e também originária da Península Ibérica, é a alheira de Mirandela. Nessa cidade portuguesa de Trás-os-Montes refugiaram-se muitos judeus perseguidos pela Inquisição. Fingindo-se de cristãos mas fieis ao hábito não de comer carne de porco, esses judeus inventaram uma salsicha recheada de pão e frango, basicamente. Assim despistavam seus perseguidores, pois a alheira se parece muito com a farinheira, linguiça portuguesa que leva porco. Quando quero comer uma boa alheira e estou a um oceano de distância do Flor de Sal, ótimo restaurante em Mirandela, vou à Academia da Gula, na Vila Mariana. Dona Rosa prepara uma ótima e ainda arranja um bom azeite para temperar o enchido.

Morcilla do São Cristóvão / Foto: divulgação

Também do Velho Mundo, outra escola linguiceira é a germânica. Ok, os alemães são mais conhecidos pelosa salsichões e há quem diga que as wurst são salsichas, mas eu as entendo muito mais como linguiças. É comida de rua e de estádio, em diversas variações: currywurst, weisswurst (de vitela), paprikawurst, entre outras. São assadas em churrasqueiras a gás, em geral, e servidas com pão. Deliciosas. Uma boa weisswurst em São Paulo é a do Zur Alten Muhle, no Brooklin. A combinação com o chope extremamente bem tirado pelo Werner é fundamental.

Ainda pela zona sul da cidade, no Cambuci, o sexagenário botecão A Juriti preserva a tradição de uma receita que, ao que se sabe, é genuinamente nossa, paulistana: trata-se da Joana D'Arc, uma linguiça calabresa banhada em cachaça e que vai direto ao fogo, flambada. É cortada em fatias finas para ir à mesa ou ao balcão. A bem da verdade, o Elídio Bar, na Mooca, e o Jabuti, na Vila Mariana, também preparam a receita.

Nos bares de São Paulo a gente prova também linguiça com sotaque caipira, no caso, a popularíssima linguiça de Bragança Paulista, que está presente em um sem-fim de endereços. O meu predileto é a clássica Casa da Mortadela, quase na esquina da São João com a Ipiranga. Impossível passar por ali e não pedir um naco daquele rolo que fica vendo o dia passar no canto da chapa enfiado no meio de um pão francês.

Uma linguiça 100% made in Bragança Paulista pela chef Patricia Polato, da Linguiçaria Real Bragança, é a base do gostoso choripán servido pelo chef Checho Gonzales em sua Comedoria Gonzales, o bom e sempre lotado bar que fica numa esquina do mezanino do Mercado Municipal de Pinheiros.

E por falar em mercado, de repente, me lembrei da porção de linguicinha com jiló e cebola do Bar da Lôra, no Mercado Central de Belo Horizonte. Daquelas fininhas, como as que minha tia Alicinha coloca para frigir logo às 7 da manhã nos dias em que prepara o melhor tutu de feijão do mundo.

Vai lá:

Academia da Gula. Rua Caravelas, 374, Vila Mariana, São Paulo.

Bar da Lôra. Mercado Central de Belo Horizonte (Avenida Augusto de Lima, 744, centro), Belo Horizonte.

Casa da Mortadela. Avenida São João, 633, centro, São Paulo.

Comedoria Gonzales. Mercado Municipal de Pinheiros (Rua Pedro Cristi, 31, box 85, Pinheiros), São Paulo.

A Juriti. Rua Amarante, 31, Cambuci, São Paulo.

La Cabrera. Calle Cabrera, 5127, Palermo, Buenos Aires.

São Cristóvão. Rua Aspicuelta, 533, Vila Madalena, São Paulo.

Zur Alten Muhle. Rua Princesa Isabel, 102, Brooklin, São Paulo.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.