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Boteclando

Lisboa (ou onde cervejaria é lugar de comer marisco)

Miguel Icassatti

07/11/2018 22h02

Cervejaria Relento: frutos do mar fresquíssimos / Foto: Miguel Icassatti

Do Minho ao Algarve, da Serra de São Mamede a Nazaré – a nova meca dos surfistas big riders e cuja costa deve receber um swell com ondas de 15 metros até esta sexta –, Portugal é um país de becos. E de becos fotogênicos. É difícil conter o ímpeto de fotografar o casario branco e as ruas estreitas de suas vilas e cidadezinhas.

Em Portugal come-se bem também, muito bem, pagando pouco, especialmente nas tascas – ancestrais diretos dos nossos botecos –, que são estabelecimentos pequenos, nos quais marido, mulher, cunhado, filhos e sobrinhos trabalham juntos, no salão e na cozinha. É um exemplo aparente de negócio familiar que costuma ser bem-sucedido (se o pau quebra entre o Manel, a Maria e os miúdos, ah, isso costuma acontecer longe dos olhos da freguesia).

Portugal é o país em que podemos comer alguns dos melhores pescados do Ocidente – e os patrícios comem 57 quilos per capita, levando a Terrinha ao pódio entre os maiores consumidores do planeta. São quase 1200 quilômetros de extensão de costa, repleto de cardumes de sardinha, robalo, espadarte, garoupa, sem contar frutos do mar como camarão, amêijoa, lula, polvo, percebes, ostra, lavagante, caranguejo, navalha, entre outras tantas espécies.

Se Netuno abençoa o mar dos surfistas de Nazaré – as ondas gigantes são consequência do chamado "canhão de Nazaré", um cânion submarino muito próximo da costa que, no período de outubro a janeiro, se transforma numa verdadeira fábrica de vagalhões – também dá lá sua contribuição vinda do fundo do Atlântico para prover aos pescadores com o que há de melhor: o litoral português é atingido por uma ramificação de uma corrente marítima quente que sai do Golfo do México e vai até o Atlântico Norte. Esse desvio para o sul, conhecido como "Corrente de Portugal", encontra-se a sudoeste com a corrente fria das Ilhas Canárias. No verão, os ventos fortes do Norte sopram na costa e empurram as águas mais rasas para o meio do Atlântico. Com isso, as águas mais profundas e frias sobem à superfície e renovam o mar, carregando consigo muitos nutrientes que atraem os cardumes.

Canecão gelado na Cervejaria O Relento / Foto: Miguel Icassatti

Como a profundidade da costa de Portugal não ultrapassa os 200 metros, há maior penetração de luz e oxigenação, o que faz com que as águas tenham muitos nutrientes e salinidade mais baixa. Assim o oceano vira um depósito de resíduos orgânicos dos rios e esse material serve de alimento para muitas espécies de peixe.

Não é por acaso que em Lisboa, especialmente, existam dezenas (centenas, será?) de marisqueiras, com seus ingredientes inacreditavelmente frescos, um aquário próximo à porta, com lagostas vivinhas da silva a nos receber. A mais famosa – e ponto de encontro de brasileiros – é a Cervejaria Ramiro, no Intendente.

Nesta semana fiz minha primeira refeição lisboeta em outra dessas casas, do lado oposto da cidade, na verdade no limite entre Belém e Oeiras, que é uma vila na Grande Lisboa: a Cervejaria Relento. Ao que meus ouvidos puderam captar, só haviam três brasileiros no local, no caso, eu e meus amigos Pedro e Shirley. Nossa mesa ficou completa com o Ricardo, que aliás foi quem nos conduziu até lá.

O cardápio de O Relento: frescor máximo / Foto: Miguel Icassatti

No Relento, sexta-feira passada, comi a maior ostra da minha vida – sobre a palma da minha mão, a concha ia do punho à falange –, deliciosos camarões-tigre, que pareceram-me com os nossos lagostins e rissóis de camarão.

Mas o que me chama a atenção é que – não sei se você, que me lê, percebeu – essas marisqueiras, a maioria delas, apresentam-se também como cervejarias. Faz sentido? Não sei. A bem da verdade, São Paulo, convenhamos, tem lá suas idiossincrasias gastronômicas. Afinal,onde mais brasseria é chamada de bistrô e trattoria vira cantina?

… e um beco no centro histórico de Cascais / Foto: Miguel Icassatti

Por falar em São Paulo, o lugar que mais me faz lembrar as marisqueiras-cervejarias lisboetas é o Jabuti, na Vila Mariana. No balcão ficam expostos os pescados, as manjubinhas, o melhor escabeche de atum, roll-mops, um polvo dos bons, sem contar o bolinho de bacalhau, que alude diretamente a Portugal. É um cinquentão da cidade que já teve dias mais movimentados, mas continua sendo o que sempre foi: nem marisqueira, nem cervejaria. Mas, sim, um grande boteco.

Vai lá:

Jabuti. Avenida Conselheiro Rodrigues Alves, 1315, Vila Mariana.

Cervejaria Ramiro. Avenida Almirante Reis, 1, Intendente, Lisboa.

Cervejaria Relento. Avenida Combatentes da Grande Guerra, 10 C, Oeiras, Lisboa.

 

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.