Topo

Boteclando

Seu Mário e o Ita

Miguel Icassatti

29/11/2018 12h19

Balcão do Ita: clássico do centro da São Paulo / Foto: Miguel Icassatti

 

 

Nos raros momentos em que pratico a autoindulgência, dou-me de presente uns 1000 metrinhos de natação numa tarde ensolarada de terça-feira, compro um CD qualquer (sou daqueles que ainda compra CD), um Ray-Ban Aviator ou encomendo uma camisa sob medida feita pelo Seu Mário Obara.

Quem me apresentou ao Mário San foi o compadre Caio, em 2010. Este que deve ser um dos últimos alfaiates no centro de São Paulo, Seu Mário trabalha de porta fechada, num ateliê instalado no 14º andar de um prédio que tem um belo hall de entrada, no Largo do Paiçandu, em meio a rolos de tecido, a uma TV de tubo, a dois ou três arquivos com centenas de moldes cortados em papel pardo, a dois manequins empoeirados, a dezenas de cartões colados na lateral de um armário, deixados por clientes – a imensa maioria da clientela é composta por gerentes e diretores de banco –, a uma máquina de costura (pilotada pela Iracema, a escudeira fiel) e a um baleiro sempre cheio de rebuçados de banana e de menta. Desde que ele fez minha primeira camisa, com a qual casei e que mantém-se impecável depois de oito anos de uso, não me lembro de ter voltado com os bolsos vazios para casa.

Octogenário, ou quase, Seu Mário tem duas filhas e sonha, eu sei que sonha, em ensinar sua linda profissão a um dos netos.

Seu Mário é um tesouro do centro de São Paulo e seu ateliê deveria ser tombado, tanto quanto alguns vizinhos que sobrevivem ali naquele triste e maltratado entorno do Largo do Paiçandu: a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, o Ponto Chic, a Galeria do Rock e… a Leiteria Ita.

Houve um tempo, nós sabemos, em que o centro da cidade reunia os endereços mais chiques de São Paulo: restaurantes, bares, cafés e leiterias.

Diferentemente o que o nome sugere, porém, as leiterias não eram lugares aonde as pessoas chegavam para beber leite ou comprar seus derivados. Eram um híbrido de café e restaurante, e ficavam abertas o dia todo. Lembro de, nos tempos de office-boy, passar pela Leiteria Americana, já decadente, na Rua Xavier de Toledo para tomar uma Coca-Cola no balcão.

A Leiteria Ita, ou simplesmente o Ita, foi aberta em 1953. É um lugar cuja decoração, obviamente parada no tempo, nada deve à dos mais originais botecos deste mundo. Não há mesas, apenas um balcão em forma de W, em ziguezague e com tampo de mármore, ornado por banquetas sobre as quais os comensais se acomodam para o repasto. As paredes sustentam os vistosos cardápios – pop art é aquilo ali.

Um amigo, ex-morador do Paiçandu, disse-me que em certa época não era raro encontrar palhaços, malabaristas e até a mulher barbada  no balcão do Ita, porque o sindicato dos artistas circenses funcionava nas imediações.

O fato é que o Ita é um lugar que serve comida caseira, farta, os pratos da casa, e a bom preço. Tem, por exemplo, o Bueno (arroz, feijão, bisteca e ovo, 18 reais) e o contrafilé a cavalo com arroz, a 30 reais. Às sextas, serve bacalhau, mas, confesso, já provei e não gostei.

Quarta é dia de feijoada, que é o que recomendo: a carioquinha vem montada no prato, com arroz, couve refogada, torresmo, uma rodela de paio, um ou dois pedaços de costelinha e lombinho. Molho de pimenta, um pãozinho e a farofa vêm a parte. Tudo por 29 reais, com direito a uma batidinha de limão honesta.

Pouca gente ali dispensa, pra encerrar o almoço, o gostoso pudim de leite (5 reais a fatia).

Preciso fazer uma visita ao Seu Mário.

Vai lá:

Leiteria Ita: Rua do Boticário, 31, centro.

 

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.