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Boteclando

Um boteco, uma foto, um livro, um filme

Miguel Icassatti

29/03/2019 20h31

O Británico: um bar que se entrelaça com a história de Buenos Aires / Foto: Miguel Icassatti

Estava eu ontem a procurar alguma imagem antiga de meus périplos botequeiros – eu queria, sinal dos tempos, postar um #tbt no instagram – , quando veio à minha mão, na pilha de retratos impressos em papel fotográfico no formato 10×15, a saudosa fotografia reproduzida acima.

Trata-de de um clique que fiz em janeiro de 2004, no Bar Británico, localizado em San Telmo, Buenos Aires. Era minha primeira viagem à cidade e, ao longo de uma semana, visitei os pontos turísticos obrigatórios, tirei uma selfie com Carlitos Tévez, então jogador do Boca Juniors, e peregrinei por uma dúzia de botecos, de La Boca a Palermo Viejo – que é, aliás, um dos meus lugares prediletos na Terra.

Não cheguei a ver Jesus na goiabeira, mas não deixo de admitir que possa haver uma conexão sobrenatural entre mim e o Británico. Não quero crer que terá sido apenas uma sequência de coincidências.

Naquele dia, perto da hora do almoço, sentei-me na mesinha à esquerda na foto, comi um sanduíche de presunto cru e tomei uma garrafa de cerveja Quilmes. Fui atendido por aquele garçom, o senhor vestido de branco, que aparece ao centro e ao fundo da foto, e que está com um pano sobre o ombro direito, a ler o jornal.

Alguns meses depois, fui ao cinema para assistir a Diários de Motocicleta, o belo filme de Walter Salles baseado no livro "De moto pela América do Sul", escrito pelo jovem Ernesto Che Guevara, no qual ele detalhava a fantástica viagem que fizera na companhia do amigo Alberto Granado, no início dos anos 1950, a bordo de uma moto, desde a Argentina até a Venezuela.

Parênteses longo: no fim de 2002, estive em uma feira de livros na USP, onde me deparei com o diário de Che. Comprei-o e soube ali que Salles estava a filmar a história. Envolvido por ela, fiz uma pesquisa e encontrei uma reportagem do jornal cubano Granma, que dava conta de que Alberto Granado estava vivo e residia em Havana. Entrei em contato com o autor da matéria, Antonio Paneque Brizuela, que muito me ajudou a convencer Granado a me dar uma entrevista. Em outubro de 2003, depois de muito insistir, desembarquei em Havana, Cuba, onde fiz três sessões de bate-papo com o amigo de Che. A reportagem foi publicada pela revista MIT, editada na época pela editora Trip.

Pois bem, numa das cenas no início do filme – aquela em que Ernesto convence Alberto a encarar a estrada a bordo de La Poderosa – , quase pulei da poltrona ao ver na telona o Bar Británico. E fiquei mais atônito ainda ao ver que o garçom que me atendeu fazia uma ponta no filme, como figurante. Assista ao filme, é o que posso recomendar a você que me lê.

O Bar Británico, por sua vez, tem uma história e tanto. Ele foi aberto na esquina das ruas Brasil e Defensa, de frente para o Parque Lezama, no exato ponto no qual teria sido fundada a cidade de Santa Maria de los Buenos Ayres, em 1536 – a capital argentina seria refundada em 1580, depois que o assentamento anterior foi destruído por índios.

Ocupou o mesmo ponto do La Cosechera, uma casa especializada em polvo, inaugurada no início do século XX por três irmãos nascidos na Galícia, Espanha. Foi rebatizado após a Primeira Guerra Mundial, em homenagem aos soldados ingleses que foram viver na cidade e que passaram a frequentar o local enquanto construíam ferrovias.

Em uma das trinta mesas de seu salão, o romancista Ernesto Sábato escreveu algumas páginas de "Sobre Heróis e Tumbas". Além de Walter Salles, nada menos que Francis Ford Coppola utilizou o bar como locação de um filme, no caso, Tetro, de 2009.

Durante a Guerra das Malvinas, que envolveu Argentina e Inglaterra em 1982, o Británico teve de mudar de nome, para Bar Tánico. Anos depois recuperou o nome.

Em junho de 2006, o dono do imóvel não quis renovar o contrato de aluguel com o bar. Quando tentou reaver a posse do local, viu-se sob o protesto dos vizinhos e frequentadores que, em um gesto impressionante, entregaram-lhes as chaves das próprias casas, em vez de abandonar o Británico – consta que desse grupo de protestantes fazia parte até mesmo Daniel Scioli, então vice-presidente da República (2003-2007). Apesar do movimento, o bar foi encerrado.

Um empresário comprou o imóvel no ano seguinte e restaurou o bar, que sobreviveu até agosto de 2014. Veio mais um curto período desativado, até que em novembro daquele ano foi reaberto e segue em operação desde então, sempre aberto até as 3 da manhã.

A América, como disse o Che, por seu povo e sua cultura, é mesmo maiúscula.

 

Vai lá:

Bar Británico. Avenida Brasil, 399, esquina com Rua Defensa, Santelmo, Buenos Aires.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.