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Boteclando

Casa Guedes: sangue brasileiro sem perder o DNA lusitano

Miguel Icassatti

13/03/2020 11h55

Casa Guedes, no Porto: origem lusitana e investimento carioca / Fotos: Miguel Icassatti

"Bares e restaurantes não vendem somente comida e bebida. As pessoas vão a esses lugares para se alimentar, mas também para ser felizes", diz Ricardo Garrido, um dos sócios da Cia. Tradicional de Comércio, a bem-sucedida rede de bares e restaurantes composta por casas de origem paulistana como Original, Pirajá, Astor, Bráz e Lanchonete da Cidade.

Assino embaixo a 'lei de Garrido' e é por isso que sempre que desembarco na cidade do Porto – por razões profissionais, tenho ido uma ou duas vezes por ano – vou logo à Casa Guedes.

E foi para lá segui, portanto, naquele final de manhã outonal e chuvoso de novembro passado, certo de que seria feliz, mais uma vez. Mal pus os pés no salão, porém, levei um susto.

"Bom dia!", disse-me, com sotaque carioca, o rapaz que me atendeu ao caixa.

"Ué, cadê o Manuel?", perguntei e logo virei-me para o canto do balcão e me dei conta de que também não estava ali o César.

"O César está ali na outra unidade", disse-me o gajo.

Outra unidade? Essa era nova: a Casa Guedes havia acabado de ganhar uma filial.

Desconfiado, fui até lá, em busca da felicidade.

Corta.

César Correia, o mestre: pernil à moda de baião

Conheci a Casa Guedes em 2015, por indicação do compadre Caio Mariano – que, aliás, já havia me apresentado, em 2014, ao fantástico Porchetta, em Nova York.

A Casa Guedes é uma tasca – ou seja, um típico boteco lusitano – instalada em uma esquina da Praça dos Poveiros com o Passeio de São Lázaro, região central do Porto, que havia sido comprada pelos irmão Cesar e Manoel Correia em 1987. Acima do letreiro com o nome da casa ainda está afixada a antiga placa luminosa do "Snack Bar Guedes", que servia refeições rápidas, como francesinha (típico sanduíche portuense), cachorro-quente e pernil assado.

Foi sob a gestão dos irmãos Correia que a Casa Guedes voltou o foco para o que interessa, a receita que vem fazendo a sua fama: o sanduíche de pernil com queijo de ovelha à moda de Baião, lugarejo de onde os manos vieram, na divisa entre as regiões vinícolas do Douro e dos Vinhos Verdes.

Cesar é o responsável pelo preparo dos sanduíches, enquanto Manoel sempre cuidou do caixa, tarefa acumulada, nos dias de muito movimento, com o serviço do chope e o despacho das porções de batata ou do bolinho de bacalhau aos clientes.

Parte do segredo do sanduíche é a "manha" do César em cortar a peça de pernil, pacientemente, em lascas, e fazê-las deslizar para o recipiente repleto de molho, com o qual serão regadas assim que sejam dispostas sobre meia banda de pão, cobertas por uma fatia de queijo, e a outra metade do pão. Nessa versão, custa 4,50 euros; sem queijo, sai a 3,50 euros.

Também secreta é a mistura de temperos do molho. Nunca consegui que César revelasse o que vai ali, embora possamos suspeitar: vinho, alho, cebola, ervas e a gordura do próprio animal. Se o pernil da Casa Guedes foi parar até na Time Out, célebre revista inglesa, não tardaria a chegar até o lado de cá do Atlântico, certo?

Tanto chegou, que chamou a atenção do grupo Boteco Belmonte, dono de vinte bares e restaurantes no Rio de Janeiro. E, abençoada por São Jorge Jesus, sim, o conglomerado carioca associou-se à Casa Guedes e em setembro de 2019 deu-lhe a tal filial.

Desconfiado, eu dizia, fui lá conferir.

Sanduíche de pernil e César, ao fundo: criatura e criador

Instalada na mesma calçada, uns 50 metros adiante, a Casa Guedes 2.0 ocupa um prédio de três andares, com uma cobertura a céu aberto voltada para a praça. Ali eu tomaria um bom Negroni uma ou duas noites depois.

No movimentado andar térreo foi reproduzido o balcão da casa-mãe, em extensão maior, com direito a uma bela chopeira numa ponta. Na lateral, que fica de frente para a porta de entrada, a grande atração é a estação de trabalho em que Cesar prepara os sanduíches de pernil.

Ao notar que era ele quem estava ali na Casa Guedes 2.0, tranquilizei-me. Pedi um sanduíche de pernil 2.0 e puxei conversa. Ele contou-me, por exemplo, que utiliza pernil de leitoa, mais saboroso e macio. Na ausência dele, garantiu, os sanduíches estão em boas mãos, brasileiras, no caso, já que ensinou a alguns funcionários o delicado ofício. De fato, conforme pude conferir duas semanas trás, o sanduíche segue impecável.

Nessa filial notam-se alguns maneirismos brasucas, como a abordagem do garçom que chega com uma bandeja cheia de salgados, e a inclusão de novas opções no cardápio, a exemplo do carioquíssimo sanduíche de pernil com abacaxi e a dispensável francesinha, típico sanduíche portuense recheado com frios, bife e coberto com queijo e molho de tomate.

Na Casa Guedes original, os novos sócios tiveram a sabedoria de mantê-la intacta, roots. Mais do que isso, compraram o prédio onde está instalada. Há que se reverenciar a tradição, afinal, sem prejuízo ao desejo de crescer e abrir novas frentes de negócio.

Quanto a este glutão, que sorte: a Casa Guedes é o que mais próximo define o conceito de felicidade. Agora, em dose dupla.

Vai lá:

Casa Guedes. Praça dos Poveiros, 76 e 130, Porto.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.