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Boteclando

Nos bares que amo, como seria meu primeiro trago pós-quarentena

Miguel Icassatti

11/05/2020 16h11

Blue Bar, no The Algonquin: será em Nova York / Foto: divulgação

Será debaixo de um guarda-sol, no terraço do Bar do Luiz Fernandes numa tarde calorenta de sábado, daquelas que a gente não quer que acabe nunca, chamando uma gelada e um bolinho de carne.

A primeira vez será numa mesa à janela no Café Lezama, em Buenos Aires, depois de uma caminhada dominical pela feirinha de Santelmo.

Será quente, debaixo do cobertor, tomando um choconhaque naquele barzinho, perdão, esqueci o nome, em Visconde de Mauá, escutando o cricrilar dos grilos.

Terá o déjà vu de um fim de noite do fim dos anos 1970 ou começo dos 80, empunhando um copo de Manhattan e beliscando os bicos de uns pasteizinhos, num canto do balcão do Rodeio, que o célebre maître Ramon definiu como "um lugar que se atende aos cinco sentidos, do paladar ao tato, com o aperto de mãos, de visão de gente bonita e alegre à audição de coisas agradáveis, passando pelo perfume da boa comida".

A primeira vez será com um copo de Duckstein – no centenário Café Paris, em Hamburgo – levemente resfriada, com aquele vermelho translúcido e colarinho branco, servida pela garçonete de olhos grandes, rosto branquelo, rabo de cavalo e uma intrigante pedrinha brilhante colada no canino esquerdo.

De ladinho, será na banqueta ao balcão do Bar da Lôra, no Mercado Central de Beagá, com a turistada toda a testemunhar aquela beleza de jiló com linguicinha.

Será uma viagem: numa noite, com o cosmopolitan do Blue Bar do hotel The Algonquin, em Nova York; na seguinte, com o bloody mary do Harry's Bar parisiense.

Ou a bordo de uma movida madalena, regada a um gim tônica no Astor, seguido de um caldinho no São Cristóvão, três ou quatro caldeiretas de chope no Filial e a conta, por favor.

Será numa noite chuvosa e fria com una copa de vino na madrilenha La Bodega Ardosa.

Bodega La Ardosa, em Madri / Foto: Miguel Icassatti

Terá cheiro de maresia e brisa fresca do Gonzaga, na inigualável varanda do Heinz.

A primeira vez não poderá ser com o caju amigo do Pandoro, com o psicodélico do Lírico nem com o bullshot do Bistrô, que Deus os tenha.

Mas, ao som de Led, Stones e Queen, será no sábado-sem-lei do Bar do Joe em Garibaldi.

Por que não seria com as mãos lambuzadas do caldinho morno a escapar do meio do sanduíche de pernil com queijo de ovelha da Casa Guedes, no Porto?

Ou, então, solitária, num dos sofás do Setra, em Braga, desde que a bebericar o negroni perfeito.

Ou, em pleno centro histórico parmigiano, merecerá um brinde com o melhor Chianti Classico disponível na carta da providencial Osteria Dello Zingaro.

Será à la Hemingway, com umas cervejas na Brasserie Lipp seguidas de um pernod no Café de Flore ou, um pouco mais à esquerda, em Havana Vieja, com mi mojito (e moros con cristianos) en La Bodeguita e mi daiquiri en la Floridita.

Será rapidinha, com o tempo de um trago de Canarinha mais um torresmo no Valadares.

Ou despreocupada e molenga na mureta do Bar Urca, no primeiro fim de tarde com pôr-do-sol depois que tudo isso passar.

Ao som de John Coltrane ou Duke Ellington, será no balcão do Piratininga a primeira vez.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.