Após 6 meses, minha 1ª ida ao boteco: o fantasmavírus rouba a alma do bar
Exatos seis meses depois que foi confirmado o primeiro caso de covid-19 no Brasil, em 26 de fevereiro, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos em número de mortes causadas pelo coronavírus por 100 mil habitantes, segundo dados da Universidade Johns Hopkins: 55,05 mortes por 100 mil aqui e 54,18 no país do Mickey. Nesse período, o Brasil somou 3.722.004 de casos confirmados da doença, que matou 117.756 brasileiros. A boa notícia é que a média móvel diária de registros da doença no país caiu 16% em relação a 14 dias, o que indica uma redução.
Foi também na noite deste dia que, coincidentemente, voltei a sentar-me em uma mesa de bar, a convite de um amigo com quem não me encontrava desde o ano passado.
Novo normal?
Foi estranho, não foi uma experiência nada legal.
E isso não tem nada a ver com a conversa fraterna, com o chope impecável nem com o cumprimento dos protocolos de prevenção por parte do bar, a saber: mesas distantes umas as outras, cardápio disponível por QR code, brigada de salão devidamente paramentada com EPI's e totem com álcool gel na entrada.
Antes de chegar àquele boteco no qual tantas vezes dei risada, encontrei amigos, bebi e comi bem, eu imaginava que, Ok, não iria me importar com esse novo cenário.
Acontece, meus amigos, que álcool gel e máscara podem muito bem fazer parte, respectivamente, de nossa cesta básica e de nosso enxoval. Mas num ambiente como o bar, que simboliza a confraternização, a irreverência, a celebração, a indulgência e a amizade, esses itens materializam a tristeza de quem, como eu, não consegue relaxar aos colocar os pés para fora de casa, representam o desconforto de quem, como eu, se incomoda com próprio bafo a aquecer a pele sob a máscara, e o medo de quem, como eu, é pai e jamais irá se perdoar se levar para casa o fantasmagórico coronavírus.
No que pude, tomei lá meus cuidados para me proteger: pendura a máscara na orelha, dá um gole no chope, recoloca a máscara. Espeta a calabresa, pendura a máscara na orelha, mastiga, recoloca a máscara, borrifa álcool nas mãos.
O coronavírus à espreita
A verdade é esta: por mais limpo e esterilizado que o bar esteja, o fantasma do coronavírus estará ali a rondar.
Primeiro, porque o bar não é só corpo físico. O fantasmavírus vai roubar a alma do bar e em algum momento vai ser assunto em cada uma das mesas, como foi na minha, quando meu amigo contou que o sobrinho, de 6 ou 7 anos, inventou uma engenhosa armadilha para prender o dito-cujo: folhas de papel melecadas de cola branca colocadas no hall de entrada da casa, para grudar o monstro invisível.
Quando me dei conta, o fantasmavírus já estava dentro da minha, transformando-me num voyeur, com os olhos e ouvidos atentos e preocupados sobre a apatia nas mesas alheias.
Na minha direita, dois caras conversavam numa boa, a menos de 1 metro de distância um do outro, com as máscaras no queixo. Casais cochichavam e bebericavam em dois ou três casulos, digo, mesas, despreocupadamente.
À minha frente, a mesa passaria a ser ocupada por dois rapazes e três moças. No que se sentaram, guardaram as máscaras. Uma delas, ao ser reconhecida por uma mulher que adentrava o salão e seguia para outro canto, levantou-se para cumprimentar. Abraçaram-se e uma delas, sem graça, balbuciou alguma coisa. Só puder ouvir o fim da frase: …"nada de distanciamento social, né?"
De uma mesa mais adiante, uma mulher também levantou-se, cambaleante, não sei se por causa do salto ou dos efeitos do gim tônica e, vindo na direção da mesa em que eu estava, desviou, ufa, à direita, não sem antes gritar: "uééé, não é aqui o banheiro?"
Já com as portas de ferro baixadas, próximo do horário regulamentar, o maître passou de mesa em mesa informando que o serviço de cozinha e de bebidas seria encerrado. Bebemos a última rodada de chope, pagamos a conta e fomos embora. Àquela hora, imaginei que estava deixando o fantasmavírus no bar. Mas receio que terei de lidar com ele pelos próximos 14 dias.
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