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Boteclando

Entre mortes, restaurantes e bares fechados, estamos à espera do lockdown

Miguel Icassatti

23/12/2020 04h00

Com os salões fechados desde meados de março , muitos restaurantes da capital paulista encerraram as atividades durante a pandemia. Pasv Avenida São João, centro (Foto: Reinaldo Canato / UOL)

Matheus Aciole da Costa, 23 anos, formado em gastronomia e cursando o terceiro período do curso de Nutrição, trabalhava com os pais na loja de bolos da família, em Natal, e sonhava em ter uma doceria. Morreu em 1º de abril, vítima de covid-19.

O Abu-Zuz, tradicional bar-restaurante de cozinha libanesa aberto no bairro do Brás, zona de comércio popular na central de São Paulo, em 1989, fechou em meados de junho. Cynthia Moujaes, proprietária e filha do fundador da casa, tentou uma linha de crédito junto ao banco para, entre outras providências, implantar o sistema de delivery. Não conseguiu.

Celso La Pastina, admirado empresário do mundo do vinho e da gastronomia, dono das importadoras La Pastina e World Wine e do restaurante Enosteria Vino e Cucina, em São Paulo, morreu eu 20 de agosto, vítima de complicações cardíacas causadas pela covid-19.

O La Frontera, em operação desde 2006, recebia clientes como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O ótimo restaurante especializado em carnes, de serviço bem-feito e de instalações aconchegantes no bairro da Consolação, em São Paulo, encerrou as atividades em abril. A restauratrice Ana Massochi não conseguia pagar os funcionários com o restaurante fechado, sobretudo na fase vermelha do Plano São Paulo de retomada econômica.

Lia Tulmann, chef de cozinha à frente dos restaurantes Lia, no Shopping Jardim Sul, e Elvira, no Shopping Vila Olímpia, e ex-sócia do bufê Badebec, todos em São Paulo, morreu no dia 23 de abril, vítima de covid-19.

O PASV, bar-restaurante localizado na Avenida São João há muito já não recebia a volumosa clientela de outros tempos – foi inaugurado em 1970 – mas seguia servindo bons pratos do dia, como a pescada frita e a carne assada. Não resistiu à pandemia e fechou as portas em abril.

Dida, proprietário da pizzaria Vituccio, na Vila Ipojuca, zona Oeste de São Paulo, morreu no dia 3 de junho, por causa da covid-19. Naquela quarta-feira, o Brasil havia batido o recorde de 1349 mortes em 24 horas.

A Casa Villarino, histórico boteco aberto em 1953 no centro do Rio de Janeiro, onde Vinicius de Moraes e Tom Jobim se conheceram, anunciou no dia 16 de novembro o encerramento de suas atividades. Nas paredes, havia fotos autografadas por políticos, artistas personalidades que passaram pela casa.

Os dados atualizados pelo consórcio de veículos de imprensa para apuração dos números da covid-19 no Brasil apontam que até ontem, 22 de dezembro, havia 7.263.619 casos. E 187.291 brasileiros morreram, dos quais mais de 45.000 apenas no estado de São Paulo. Estamos novamente no limiar das 1000 mortes diárias no país. Quantas não terão sido de trabalhadoras e trabalhadores da gastronomia?

Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-SP), quase 50.000 bares, restaurantes e similares foram extintos no estado de São Paulo desde o início da pandemia.

Para cada paulista morto pelo covid-19, um bar também morre, razão pela qual sou até capaz de entender a grita dos empresários do setor contra as restrições quanto ao horário de funcionamento e à venda de bebidas alcoólicas em seus estabelecimentos.

Eu entendo mas não concordo e miro-me, mais uma vez, nos exemplos que vêm do exterior, sobretudo da Europa, onde muitos países apertaram as regras. Vimos esse triste e recente filme há poucos meses. A Alemanha vive em lockdown, desde ontem e até 10 de janeiro. Tudo fechado, de escolas a bares. Algumas regiões da Itália também cerraram as portas dos bares, em outras elas podem ficar abertas até 18 horas. Na Suécia e na Dinamarca está proibida a venda de álcool depois das 22 horas.

Nesses países os índices de contaminação não chegam perto dos do Brasil. Mas há uma consciência mais abrangente segundo a qual evitar a contaminação é dever de todos, ainda que as medidas prejudiquem a economia. O respeito aos protocolos não os impede de pleitear ajuda das autoridades, dos bancos, dos fornecedores, de nós, os clientes, para manterem seu negócio na ativa. E de protestar, como ocorreu em Portugal, onde o chef Lubomjr Stanisic – que acabou de ganhar uma estrela no Guia Michelin – e mais nove empresários do setor comandam o movimento "Sobreviver a pão e água". Eles iniciaram greve de fome e só encerraram depois que foram recebidos pelo prefeito de Lisboa para tratar de apoios ao setor.

Por aqui, aposto que teremos um lockdown em breve – precedido por esta fase vermelha em todo o estado de São Paulo no Natal e Ano Novo. Um lockdown à brasileira, provavelmente, simbolizado pela máscara no queixo. A máscara no queixo é como o título daquela canção de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira: "Inútil Paisagem".

Enquanto o lockdown não vem, temos o exemplo da aguerrida Livia Mannini, gestora do Bar do Alemão, em São Paulo, que conclamou, em seu perfil no Facebook, outros empreendedores a ser reunirem virtualmente no dia 21 de dezembro em torno de uma pauta que cobre apoio e condições mínimas de financiamento ao setor. Ela própria enumera algumas: subsídio para pagamento de salários e aluguel, bem como prorrogação e adequação da MP 936, estendendo para novos contratos; desoneração tributária (para impostos governamentais e serviços/bens de consumo de primeira necessidade terceirizados); regulamentação das atividades dos apps de entrega; pagamento urgente e prorrogação da Lei emergencial Aldir Blanc; desoneração das tarifas das concessionárias de bens e serviços essenciais.

Nos últimos quinze dias, falei com quatro donos de bar (não vou revelar os nomes para resguardar a privacidade). Dois apresentaram sintomas leves de covid-19. Um foi internado – deve ter alta hospitalar hoje – e o quarto, apesar do quadro de embolia pulmonar decorrente da covid, foi enviado para casa porque, segundo lhe disse o médico, "o hospital está dando preferência para casos mais graves".

Não é possível assegurar que eles foram contaminados em seus próprios estabelecimentos. Mas terá sido mera coincidência?

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.