Topo

Boteclando

Retrospectiva: 20 fatos boêmio-etílicos para lembrar ou esquecer de 2020

Miguel Icassatti

31/12/2020 04h00

A reabertura de bares exigiu cuidados especiais (Fotos: Michele Lapini/Getty Images)

1. Lei Seca: Exatamente 100 anos depois da entrada em vigor da Lei Seca nos Estados Unidos, quem diria, a pandemia colocou muitos países e cidades ao redor do mundo diante de novas versões da Prohibition americana neste 2020. Se em São Paulo ainda há o embate jurídico entre os bares e o poder público quanto à restrição do horário para venda de bebidas alcoólicas, na África do Sul a comercialização e o transporte foram proibidos durante quatro meses. Tailândia, Índia e Quênia também impuseram restrições.

2. Speakeasy e festas clandestinas: Assim como ocorreu durante a Lei Seca americana, que vigorou até 1933, a proibição à realização de festas e eventos gerou efeitos colaterais: 1. a volta dos bares speakeasy (clandestinos, conhecidos na base do boca-a-boca), conforme relatos nos jornais The New York Post (EUA) e Daily Mail (Inglaterra); 2. aqui no Brasil, apesar dos quase 200.000 mortos por covid-19, a cada dia vemos relatos de festas clandestinas em diversas cidades brasileira

Speakeasy: cem anos após a lei seca, alguns bares desafiam a lei e o coronavírus nos EUA / Foto: Creative Commons

3. O caso Backer: O ano começou com a trágica morte de 10 pessoas por contaminação após terem consumido um lote de um dos rótulos da cervejaria mineira Backer. Em setembro, 11 pessoas ligadas à cervejaria foram denunciadas por crimes como homicídio culposo, lesão corporal e crime contra o consumidor

4. Lives e pileques: De Ringo Starr a Caetano Veloso, de Milton Nascimento a Ivete Sangalo, inúmeros artistas comandaram lives para se aproximarem de seus públicos. Duas das mais comentadas, nem tanto por sua qualidade artístico-musical, foram as do sertanejo Gusttavo Lima, em abril, patrocinadas pela cerveja Bohemia. Protagonista de boas bebedeiras, o cantor ainda teve de carregar a patrocinadora para darem, juntos, satisfação ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) por não terem restringido o acesso de menores ao conteúdo das lives. Outro sertanejo, Bruno, da dupla Bruno e Marrone, também exagerou na dose, em uma de suas primeiras lives

5. Delivery I: Os boêmios mais prevenidos deram seu jeitinho e passaram a beber mais em casa. Tanto é que alguns bares e microcervejarias se viraram nos 30 e passaram a vender seus produtos em sistema de delivery e/ou drive-thru, como é o caso do Original, em São Paulo – que criou um clube do chope – e da BR Brew Cervejaria, em Sertãozinho (SP), entre outras, que passou a vender seus rótulos artesanais em growlers

6. Delivery II: E 2020 foi mesmo o ano dos aplicativos de entrega. A relação entre os apps, os entregadores e os estabelecimentos (bares e restaurantes) não tem sido das mais estáveis, é bem verdade, mas a adaptação ao serviço de entrega foi a tábua de salvação de muitos pequenos empresários. De um lado, motoboys e ciclistas a reclamar de péssimas condições de trabalho e pouco retorno financeiro. De outro, os donos de bares e restaurantes a chiar contra as altas taxas cobradas pelos apps, que em alguns casos chegam a 27% de comissão. Já os apps vão bem, obrigado

7. Vinho em casa: Ao ficarem boa parte do tempo confinadas, as pessoas passaram a beber mais em casa. O consumo de vinho no Brasil, por exemplo, cresceu quase 30% no primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano passado. E esse aumento se refletiu também na comercialização dos vinhos brasileiros, que cresceu, no mesmo período, de 12% para 16% do mercado de vinhos finos, segundo a Ideal Consulting

8. Safra das safras: E por falar em vinho brasileiro, a safra de 2020 já é tida como a melhor da história. O encontro entre a alta produtividade com a boa qualidade se deveu às condições climáticas favoráveis durante o ciclo das vinhas, que permitiram uma boa maturação das uvas e, consequentemente, vinhos melhores made in Brazil.

Vinhedo da Vinícola Cristofoli/ Foto: Miguel Icassatti

9. Vouchers de desconto: Num primeiro movimento que visava apoiar os pequenos bares e restaurantes, que ficariam fechados por tempo indeterminado, as duas maiores cervejarias do país lançaram campanhas similares de vouchers de descontos, ainda em abril: Ambev (Ajude um Buteco; Apoie um Restaurante, com Nestlé) e Heineken (Brinde do Bem, junto com Campari). A ideia era que o público comprasse os vouchers dos bares e os consumisse posteriormente, financiando, assim, os bares nos momentos mais delicados da pandemia. A plataforma "Ajude um Buteco", da Ambev/Bohemia, por exemplo, foi encerrada em 17 de maio. Quem comprou, tem o direito de consumir até 31 de dezembro.

10. Pubs reabertos: O dia 4 de julho de 2020 entrou para a história do Reino Unido como o dia em que os pubs foram autorizados a reabrir e a receber seus clientes, desde que tomassem alguns cuidados, como distanciamento social e identificação do público. Até o primeiro-ministro Boris Johnson celebrou o acontecimento.

(Getty Images)

11. Conexão SoHo-Leblon-Vila Madalena: O problema é que do lado de fora dos pubs, o que se viu logo naquele dia foi uma bagunça tremenda, com jovens bêbados a perambular pela região boêmia do SoHo. E não é que os frequentadores dos bares do Leblon, no Rio de Janeiro, e da Vila Madalena, em São Paulo, ficaram com inveja dos londrinos?

12. Baden Baden sem fila: Meninas e meninos, eu vi. No mês de julho, que seria altíssima temporada, estive em Campos do Jordão e pude conferir uma cena que jamais poderia imaginar. No calçadão da Vila de Capivari, o "centrinho" jordanense, o icônico bar-restaurante Baden Baden estava vazio, sem filas, atendendo apenas a pedidos para viagem. Uma tristeza só.

Baden Baden: um ícone do burburinho invernal de Campos, agora vazio

13. Digitalização: A pandemia acelerou alguns comportamentos que vieram para ficar. Entre eles a digitalização dos cardápios dos bares e restaurantes – muitos já aderiram ao QR Code, bem como dos meios de pagamento

14. Bares, R.I.P.: Nas projeções mais recentes do presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em São Paulo (Abrase-SP), o advogado Percival Maricato, se a pandemia perdurar "por mais três ou quatro meses, vão restar cerca de 20% dos bares e restaurantes no país". A previsão foi dada nesta terça, 22 de dezembro, logo após o governo de São Paulo ter anunciado que só os serviços essenciais ficarão abertos nos feriados de Natal e Ano-Novo.

15. Solidariedade: A situação dramática mostrou-nos a bondade, a generosidade e a solidariedade de muitos empresários de bares e restaurantes, que doaram alimentos e mão-de-obra para alimentar os mais vulneráveis. Três exemplos em São Paulo são o da Rota do Acarajé, que doou marmitas e cobertores; o da Academia da Gula, que doou e serviu marmitas na região central; e do Mocotó, à frente do projeto Quebrada Alimentada, que doou cerca de 200 marmitas por dia a moradores da região da Vila Medeiros, a "quebrada", onde está localizado o Mocotó.

16. Extensão de marca: Impossibilitados de servir seus petiscos no salão e atentos a oportunidades para além do delivery – uma operação complexa, é bom ponderar – alguns botecos inovaram ainda mais. O Bar do Luiz Fernandes, que completou 50 anos na Zona Norte de São Paulo, lançou a versão congelada de seu famoso bolinho de carne, que agora pode ser encontrado em supermercados da região, como o Bergamais e o Andorinha. O FrangÓ também lançou a porção com 10 unidades de coxinha congelada, em embalagem à vácuo, vendida no próprio bar ou pelo iFood.

17. Resiliência: Localizado em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, o Dr. Costela chamou a atenção do blog em outubro pelo exemplo de empreendedorismo. Num cenário devastador para a gastronomia, o chef Celso Frizon não só desenvolveu também a versão congelada de seu carro-chefe, a costela assada – vendendo 2 toneladas por semana – como essa iniciativa lhe fez garantir o emprego de toda a equipe. Em dezembro, Celso ainda revelou em sem instagram que havia passado 21 dias internado com covid-19. "Estou de volta aproveitando minha segunda chance de vida", postou.

Celso Frizon: 2 toneladas de costela por semana e 10 novos funcionários / Fotos: reprodução

18. Descobrindo Portugal: Duas marcas de sucesso na, digamos, baixa gastronomia de São Paulo e do Rio de Janeiro corajosamente investiram no mercado português, mais especificamente na bela cidade do Porto. Na semana passada, o grupo paulistano Holy Burger inaugurou na região da Baixa o Holy Sandwich Shop, seguindo os passos da rede carioca Boteco Belmonte, que agora há cerca de um ano controla a fantástica A Casa Guedes, também no Porto.

19. Dona Onça: Janaina Rueda, chef-proprietária do Bar da Dona Onça e da A Casa do Porco, no centro de São Paulo, foi homenageada na premiação gastronômica internacional Latin America's 50 Best Restaurants, por "seu compromisso com a comunidade, desde a campanha por refeições escolares saudáveis e gastronomia inclusiva, até a mobilizaçãoo de líderes da indústria em torno do esforços de combate à Covid-19, e a ajuda a comunidades vulneráveis durante a pandemia.

20. Ocupa Rua x Sem calçada: Diversas e diferentes medidas de combate ao coronavírus vêm sendo adotadas pelos governos e cidades. É fato, não há uma cartilha unificada, ao menos no que diz respeito a horários de funcionamento em Cabrobó ou Pelotas, em Cuiabá ou Belo Horizonte. Em São Paulo, os frequentadores de bar, por exemplo, perderam as calçadas, já que os bares estão proibidos pelo governo do estado de instalarem mesas nesses espaços públicos. Mas na capital, o projeto-piloto Ocupa Rua vai na direção contrária. Trata-se de uma ação colaborativa que tem por objetivo instalar terraços ajardinados no asfalto em parceria com a prefeitura. A Casa do Porco, justamente, é um dos bares parceiros.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.