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Boteclando

“Vou morrer”: fiscal de bares relata pressão em ações de combate à covid-19

Miguel Icassatti

12/03/2021 04h00

O estado de São Paulo está, atualmente, na fase vermelha do plano de enfrentamento à covid-19, com bares e restaurantes fechados ao público

Nas primeiras horas do sábado, 6 de março, quando todo o estado de São Paulo havia passado à fase vermelha do Plano São Paulo de enfrentamento à covid-19, foram autuados nada menos do que 43 bares, restaurantes e baladas, entre outros estabelecimentos, durante operações realizadas pelo Centro de Vigilância Sanitária estadual em conjunto com a Polícia Civil, a Polícia Militar e o Procon-SP. Todos esses 43 locais ficam na cidade de São Paulo, em bairros como Itaim Bibi, Jabaquara, Moema, Morumbi, Penha, Pinheiros e Vila Mariana, e descumpriam as normas que proíbem aglomerações.

Cada operação nos faz lembrar os desenhos de Tom & Jerry, dada a lógica das perseguições gato-e-rato. Fica-se com a sensação de que sempre haverá mais ratos do que a quantidade de felinos aptos e dispostos a capturá-los. Na verdade, mais do que uma sensação, estamos diante de uma realidade: o descumprimento dos protocolos existe, a quantidade de servidores nas operações é insuficiente, tanto em esfera estadual quanto municipal, e a burocracia, assim como a falta de coordenação e de legislação específica para coibir certas irregulares, impõem dificuldades à fiscalização.

Um exemplo é a competência para atuar e multar os estabelecimentos. Fiscais da prefeitura, por exemplo, verificam o cumprimento do horário de um bar e se ele está com mesas e cadeiras na calçada, o que é proibido atualmente. Já a questão das aglomerações ou da manutenção dos 40% de limite de capacidade, em vigor na fase laranja, é de responsabilidade da Vigilância Sanitária estadual.

O blog BOTECLANDO conversou com um fiscal municipal de São Paulo – o cargo oficial chama-se "agente vistor" – que, sob anonimato, falou dos desafios aos quais profissionais como ele enfrentam atualmente, da precariedade de condições e do dia em que foi ameaçado com um revólver enquanto realizava seu trabalho.

O que faz um fiscal

"Cada subprefeitura tem sua equipe de fiscalização. Os agentes vistores são responsáveis por fiscalizar problemas como barulho excessivo, calçada quebrada, pichação, licença para comércios e publicidade em local proibido. A subprefeitura de Pinheiros tem 1400 processos eletrônicos para serem respondidos. Diariamente chegam ofícios do Ministério Público nos cobrando. Daí pedimos reiteração de prazo, ficamos sujeitos a levar processo. As ações de combate à pandemia são apenas mais um item no nosso trabalho mas, evidentemente, têm a prioridade neste momento, com a fiscalização dos bares, ambulantes e restaurantes quanto aos protocolos contra a covid-19".

Trabalho, rapa e ameaça

"No dia-a-dia fazemos as rondas. De quinta a domingo são praticamente 12, 13 horas rodando. Fiscalizamos bares e restaurantes, em relação ao cumprimento do horário de funcionamento e, se encontramos algo errado, vamos lá, tiramos foto, para deixar tudo documentado, e autuamos o estabelecimento na hora. Quer dizer, era assim. O trabalho começou a ficar perigoso, porque passamos a receber ameaças de comerciantes e de frequentadores. Passamos a circular com carro branco, sem o adesivo de identificação. Agora, quando vemos algo irregular, fotografamos, anotamos o endereço e só posteriormente entramos em contato para autuar. As operações conjuntas – que reúnem fiscais, GCM, polícia, rapa – acontecem quando ficamos sabendo de festas clandestinas em baladas e rooftops, por exemplo. Tem equipe do rapa posicionada no Itaim Bibi, na Vila Madalena, em várias regiões. Mas são equipes pequenas, não chegam às periferias, que estão largadas ao deus-dará".

Pontos críticos

"A moçada mais jovem apertou o foda-se faz tempo, está toda na rua. Alguns pontos mais críticos são a Rua Guacuí, em Pinheiros, e a Soares de Barros, no Itaim Bibi, que concentram muitos bares e posto de gasolina. Até que a Vila Madalena vem dando menos trabalho. Houve uma conversa com os donos de bares, um trabalho de prevenção, junto de toda nossa equipe, lá no início da pandemia e durante a fase mais restrita em 2020. Fizemos 75 ações. Isso não é nada, deveríamos ter feito muito mais, mas vejo como resultado as poucas festas ali no bairro. No ano passado estouramos uma festa clandestina na Rua Estados Unidos, com ingresso a R$ 1000. E o que aconteceu? Um dos presentes à festa chamou todo mundo para a casa dele, na Rua Desembargador Mamede, no Jardim Paulistano. Daí só foi lavrado um BO, não havia o que fazer, porque a festa seguiu para uma residência particular. As ruas no entorno ficaram cheias de carros e de seguranças. As festas acontecem também em outras regiões, na periferia, que, a bem da verdade, nunca 'fechou'".

Duas décadas sem concurso e poucos fiscais

"Sabemos que a fiscalização é precária. Fiz o concurso no ano de 2002 e, desde então, não teve mais nenhuma seleção pública para agente vistor, que é o nome oficial do cargo de fiscal. Desde o primeiro decreto do Bruno Covas (em março de 2020) para ajustar a cidade ao plano do governo do estado, 160 fiscais foram para casa, por serem do grupo de risco ou terem idade superior a 60 anos. Em São Paulo, na ativa, deve haver no máximo 170 fiscais em todas as subprefeituras. Tem subprefeitura que só tem um ou dois. Na sub de Pinheiros eram dez e a equipe atual soma cinco agentes".

Pressão

"Quase todos os dias recebemos ofícios do Ministério Público com denúncias, por exemplo, de obras irregulares. Já me chamaram de cuzão, ouço xingarem o Dória de FDP, vi clientes de bar dando chute na porta do nosso carro. É uma relação muito tensa. Os donos de bares estão estressadíssimos. Vi dono de bar chorar na minha frente mais de uma vez. Trabalhamos de segunda a segunda. O prefeito prometeu aumento por causa da carga de trabalho mas, quando foram ver, a legislação impede. É claro que isso criou expectativa, decepção e bronca no pessoal. Falta reconhecimento ao nosso trabalho".

"Vou morrer"

"Houve uma noite, por volta das 23 horas, em que estávamos eu e o motorista descendo a Rebouças, quando vimos uma aglomeração ao redor de uma barraca de lanches num posto de gasolina. Pedi para o motorista parar, saí do carro, fiz duas fotos "no mocó", mas algumas pessoas perceberam: por isso, voltei pro carro logo e saímos. Quando paramos num semáforo em um dos cruzamentos adiante, nosso carro foi cercado por quatro veículos, um de cada lado, à frente e atrás. O trânsito parou, um cara veio até mim e me mostrou uma arma. Pensei: "vou morrer". Quando vi, eram uns seis caras, pegaram meu celular, até que consegui dizer que eu era da fiscalização. Pediram meu crachá, eu mostrei e desconversei, dizendo que tirei foto das placas do posto, que pareciam irregulares. Só assim fomos liberados. O que a sociedade tem de perceber, é que somos um mal necessário".

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.