Topo

Boteclando

Beth Carvalho e os botequins de sua vida paulistana

Miguel Icassatti

01/05/2019 14h37

Nos Botequins da Vida, disco de 1977 / Foto: reprodução

"Ai, que bom estar aqui, que coisa gostosa! Ah, a minha vida inteira eu frequentei os botequins da vida, que é o lugar onde a gente discute… a gente discute política, a gente fala do samba, a gente ouve samba bonito… E eu fiquei mais feliz ainda porque cheguei aqui em São Paulo e encontrei um bar que é uma coisa maravilhosa… que é o Pirajá. É verdade. Vamo lá, cumpádi?"

O ano era 1999. O dia não me lembro bem, nem o Edgard, sócio do Pirajá, que foi quem me enviou pelo celular o áudio reproduzido acima, em que Beth Carvalho faz a singela declaração para, em seguida, entoar o samba "Geografia Popular", no show Esquina Carioca, que o Pirajá organizou no Tom Brasil e no qual se apresentaram também outros bambas. Sorte a minha, que estava lá naquela noite memorável.

Disco Esquina Carioca, lançado em 2000 / Foto: divulgação Pirajá

Nesse dia, conta o Edgard, ele o Ricardo, outro sócio do bar, foram buscar Beth Carvalho no aeroporto. No caminho, ela deu logo o recado:

– Olha aqui, seus filhas-da-puta: o samba estava lá quieto, vocês que foram cutucar. Agora vocês têm obrigação com o samba, que precisa de gente inteligente, empreendedora e séria. Podem tratar de trabalhar pro samba, entenderam?

Uma vida inteira frequentando os botequins da vida, conforme contou a própria Beth, certamente rendeu – ou renderá, quem sabe? – outra passagem por este mundo devidamente documentada somente com anedotas em tão nobres estabelecimentos.

Não é à toa que, tal qual o Pirajá, outros botecos paulistanos poderiam dar sua contribuição.

Como é o caso do Bar do Alemão, vizinho do Parque Antártica, uma fortaleza da música brasileira, em especial do samba e do choro (e que serve um chope de respeito), que costumava receber a cantora depois de algum concerto que ela dava no Sesc Pompeia, também perto dali. Meu amigo Carlão jurou-me que espetacular, mesmo, foi uma roda na qual ela cantou no 'Alemãozinho', num pós-Sesc, madrugada adentro.

Germano Fehr, ex-comandante do Traço de União por dezoito anos, lembra que Beth Carvalho "trabalhava em horários diferentes". Não era de beber, no máximo uma cervejinha, mas ele conta que a Madrinha do Samba, ao fim das apresentações que fazia na casa, que acabavam não antes das 4 da manhã, emendava uma roda a portas fechadas que seguia até as 10 da manhã, quando ela se retirava para descansar. Garçons, equipe de limpeza e sócios do bar compunham a privilegiada audiência daqueles momentos. "Com ela não havia distância", diz Germano.

Foi com ela, inclusive, que o empresário conheceu Madureira e Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e os sambistas em São Mateus, na Zona Leste paulistana, o maior reduto do samba hoje em São Paulo, na opinião de Germano. "A gente chegava lá, encontrava o pessoal e começava a batucar no balde", diz ele.

De volta àquele show lá do início deste texto, o Google me diz que aconteceu em 24 de março de 1999 e gerou a gravação do CD Esquina Carioca – Uma Noite Com a Raiz do Samba, que seria lançado em 2000, numa noite de autógrafos no próprio Pirajá. Quem conta daquela ocasião é o Edgard:

"No comecinho de 2000 fizemos uma noite de lançamento do CD Esquina Carioca, Uma Noite com a Raiz do Samba, todos os músicos presentes para uma sessão de autógrafos.

"Um dos grandes veículos, não me lembro qual, publicou uma nota sobre o evento e arrematou dizendo que haveria uma roda de samba com entrada grátis. Isso mesmo, Beth carvalho, Moacyr luz, João Nogueira, Dona Ivone Lara, Walter Alfaiate e Luiz Carlos da Vila. De quebra, Quinteto em Branco e Preto. Todos se apresentando graciosamente em palco aberto à distância de um abraço.

"Amedrontadíssimos, tomamos a decisão de que não haveria música, permitiríamos apenas os autógrafos e a interação ao vivo dos artistas com o público.

"19h, lotação transbordante. Gente por todos os lados, dentro, em cima e embaixo. Enfileiramos as estrelas numa mesa comprida, organizamos a fila e iniciamos a venda dos CDs.

"Tudo corria como planejado. Já relaxados, também começamos a beber chopp. Subitamente, a Madrinha levanta, convoca o quinteto, então já completamente armado – pega o microfone e anuncia, sob o som dos primeiros acordes:

– Não sei quem falou que não ia, mas vai ter samba aqui hoje, sim.

"Daí pra frente o Pirajá quase caiu, e nós também…

"O que se seguiu, entretanto, foi histórico. Uma grande emoção revestiu o bar inteiro, quase um culto de adoração aos Deuses em que aqueles artistas se transformaram naquele instante."

Em tempo: Nos Botequins da Vida, disco que Beth Carvalho gravou em 1977, é uma pérola da música brasileira.

Vai lá:

Bar do Alemão. Avenida Antártica, 554, Água Branca.

Pirajá. Avenida Brigadeiro Faria Lima, 64, Pinheiros.

Traço de União. Rua Cláudio Soares, 73, Pinheiros.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.