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iFood "fecha" restaurantes abertos e prejudica estabelecimentos

Miguel Icassatti

04/07/2020 04h00

Terça-feira, 30 de junho. A última manhã do mês já se apresentava como o prenúncio de um dia difícil para Livia Mannini, gestora do histórico Bar do Alemão, em São Paulo: a única pessoa de sua desfalcada equipe de cozinha avisou que daria o cano. Livia respirou fundo e tratou de encontrar um plano B para dar conta de abrir o bar às 11h e, assim, atender aos pedidos via Rappi e iFood, os aplicativos de delivery com os quais vem trabalhando para garantir a sobrevivência desse que é um dos baluartes do samba e da MPB na cidade, desde 1968.

Terça-feira, 30 de junho, 12h30. Apesar do perrengue, o Bar do Alemão conseguira abrir a porta no horário, com a cozinheira substituta a postos para preparar os pratos disponíveis no dia, entre os quais o delicioso páprika schnitzel da casa. Feita com filé de pernil de porco empanado e regado ao molho de paprica picante, a receita é acompanhada de duas batatas ao murro (R$ 37,90). A versão para duas pessoas leva os mesmos itens, em dobro, e custa R$ 69,84 pelo iFood.

Passada uma hora e meia de expediente, porém, o bar não havia recebido nenhum pedido sequer pelo iFood. Nem de páprika schnitzel, nem de filé à parmegiana (outra especialidade do cardápio) nem de nenhum outro item listado no menu do aplicativo.

Pudera. Para o usuário que quisesse pedir algum prato do Bar do Alemão naquele dia e horário, o iFood mostrava que o estabelecimento estava "Fechado", conforme podemos ver na foto da tela do aplicativo tirada às 12h37 do dia 30 de junho. Mas estava aberto. Só que para o iFood, repito, estava fechado. Sendo que estava aberto, às 12h37 da terça-feira, dia 30 de junho.

Tela do iFood que aparece ao usuário: restaurante fechado, mesmo estando aberto / Foto: MIguel IcassattiPor que isto aconteceu? Foi o que o blog quis saber. Primeiramente, falamos ao telefone, no mesmo dia, com o Bar do Alemão. "Estamos abertos desde as 11 horas", garantiu Livia Mannini.

Entramos em contato com o iFood,na quarta-feira, 1º de julho, 11h03, por e-mail. Perguntamos o seguinte:

"Fiz uma pesquisa ontem, às 12h30, em busca de um bar que estava aberto desde 11h, e apareceu no meu app como 'fechado'. Por que isso aconteceu?"

A resposta, recebida pelo blog às 15h23 de ontem, dia 2 de julho, também por e-mail, foi esta:

"Os horários de abertura são determinados pelos próprios estabelecimentos. Como um último recurso, em casos críticos em que o restaurante não consegue acompanhar a demanda ou na área específica os entregadores já estiverem com alta taxa de ocupação, essa medida é tomada momentaneamente para equilibrar a oferta e demanda. Isso evita grande impactos para os restaurantes, tanto em sua operação como em avaliação de clientes que poderiam ter um nível de experiência ruim."

Opa! Se bem entendemos, o iFood assume que "fecha" o estabelecimento, mesmo que esse esteja aberto. Só que nem o estabelecimento nem o usuário ficam sabendo disso. E a justificativa acima cai por terra, afinal, ao ver que o bar está fechado, o usuário é induzido a procurar outra alternativa e aquele bar perde uma possível venda.

"A informação tem de ser clara, precisa, adequada e ostensiva. O estabelecimento está inacessível pelo aplicativo. Não está fechado. É esta a informação que deveria ser divulgada: estabelecimento aberto e não-acessível no momento", informa ao blog o diretor-executivo do Procon-SP, Fernando Capez , que foi designado secretário de Defesa do Consumidor do Estado, por um período de 120 dias, desde 9 de abril, entre as medidas do governo para o combate ao coronavírus.

Essa situação, segundo Fernando Capez, pode configurar prática abusiva por parte do iFood, por atentar contra o direito de informação do consumidor. E pode caber penalidade: multa proporcional ao faturamento da empresa, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor.

Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira dos Bares e Restaurantes (Abrasel-SP), junto a donos de 300 bares e restaurantes na cidade de São Paulo, divulgada na sexta-feira, 19 de junho, mostra que 80% dos que têm parceria com os aplicativos estão insatisfeitos. Eles reclamam das taxas abusivas – 27% a 30%, a depender do app – e da retirada de muitos estabelecimentos do app em horários de grande movimento, impedindo o cliente de efetuar o pedido.

É a chamada "área reduzida", recurso que os apps usam, segundo eles próprios, para equilibrar oferta e demanda. Segundo a assessoria de imprensa do iFood, "durante períodos de alta demanda, caso o restaurante não consiga acompanhar o movimento ou se, em determinado momento, os entregadores localizados na área estiverem com alta taxa de ocupação, o iFood reduz o raio de entrega dos restaurantes que atuam no modelo full service até que seja possível equilibrar a demanda. Dessa forma, evitamos impactos na operação do restaurante, em suas nas avaliações, bem como na experiência dos clientes".

Só faltou combinar com os bares e restaurantes. "O cliente vai fazer o quê? Dar nota zero ao bar no app, esculachar nas redes sociais e cancelar o pedido", diz Livia Mannini. "É assim diariamente…"

Outro recurso, no mínimo controverso, adotado pelos aplicativos em horário de muito movimento, é o de "convidar" os motoboys a se dirigirem aos bairros que estão com alta demanda, conforme podemos ver na reprodução da tela do Rappi, capturada de um smartphone de um motoboy:

Se por um lado os motoboys vão aonde pode haver mais oferta, esse mensagem acaba, na prática, por esvaziar outras áreas.

Na manhã de hoje, o Bar do Alemão abriu a porta às 11h10. Recebeu dois pedidos pelo iFood às 11h29 e um terceiro, às 12h15. Às 12h19 e às 12h22, porém, voltou a aparecer como "fechado" para o usuário.

Tela do aplicativo reproduzida hoje / Foto: Miguel Icassatti

Já para o dono do restaurante, às 12h28, sinalizava que estava sob "área reduzida temporariamente".

Tela de gestão do aplicativo dos bares e restaurantes / Foto: reprodução

Mas o Bar do Alemão, fundado há 52 anos, que já recebeu em suas mesas Beth Carvalho e Paulinho da Viola, entre outros importantes nomes da música brasileira, está aberto. E como diz o lema do bar, que leva o nome de um disco lançado em 1975 por Paulo César Pinheiro, Marcia e Eduardo Gudin: "o importante é que nossa emoção sobreviva".

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.