Os 100 anos da Lusa e o sotaque português dos nossos botecos
Um domingo ensolarado era tudo que um adolescente como eu, morador do Pari e sócio da Associação Portuguesa de Desportos, um dos raros orgulhos do nosso pedaço, poderia querer naquele fim dos anos 1980 e início dos 1990.
Às 7 e meia da manhã eu já tocava a campainha na casa do Daniel e dali seguíamos para o clube, a fim de marcar nosso território com a toalha na beira da piscina olímpica, logo que o conjunto aquático fosse aberto. Um cochilo a mais e seríamos obrigados a procurar um pedacinho de chão lá nos confins da piscina infantil, carinhosamente chamada de penicão.
E o dia transcorrer-se-ia do jeitinho que a gente queria: alguns mergulhos, um churrasquinho na lanchonete Tri-Fita Azul, a chegada de mais amigos – Alê, Leandro, Cebola, Fabra, entre outros – para garantir o time completo do futebolzinho no fim da tarde lá em uma das quadras ao lado do ginásio do hóquei sobre patins, a Lusa era uma potência nesse esporte.
Nas inesquecíveis festas juninas, essas quadras meio que ficavam escondidas pela barraca do Minho, se não me engano. A festa junina da Portuguesa decorria ao longo de todos os fins de semana do mês, era um acontecimento e recebia paulistanos de todos os bairros, não só nós os associados, que lotavam o areião – um campo de futebol – e seu entorno, onde ficavam montadas as barracas, os brinquedos e o palco para shows. A última noite era a mais disputada: show de Roberto Leal e uma longa queima de fogos.
Além do cheiro inebriante das sardinhas assadas na brasa, nessas quermesses era possível sentir também o odor das alheiras sendo assadas na barraca trasmontana, do vapor do caldo verde a cozinhar, dos bolinhos de bacalhau em fritura. Os olhos se encantavam com os pasteis de nata, travesseiros de sintra, toucinhos do céu e tantas outras delícias da doçaria lusitana. Naquelas barracas juninas estava, de certa maneira, sintetizada a ancestralidade portuguesa de nossos botecos.
A meu ver, o antepassado direto dos botecos brasileiros é a tasca portuguesa, lugar simples, em que o dono é, muitas vezes, o cozinheiro, o garçom e o interlocutor das conversas ao balcão. Às vezes tem a ajuda da família em algumas tarefas, tal e qual ainda podemos ver hoje em dia Portugal adentro.
E em um ou outro caso, sobretudo em Lisboa, a tasca é ponto de encontro de fadistas, cantoras, guitarristas e admiradores desse estilo musical ímpar.
Pois na Portuguesa de hoje, que completou 100 anos no dia 14 de agosto, pouco resta daquelas tardes dominicais gloriosas à beira da piscina. Essa foi aterrada, depois de anos de abandono, a festa junina decaiu absurdamente e o Estádio do Canindé há muito não recebe jogos como um Portuguesa x São Paulo ou um Portuguesa x Santos, como aquele de 1993 em que Dener marcou o gol mais lindo da história do estádio.
Para os saudosos como eu, porém, felizmente resta viva a Taberna do Cais do Porto, uma tasca incrustada na sede da Lusa, onde posso comer deliciosas pataniscas de bacalhau (20 reais a porção com sete unidades) e uma boa alheira à moda trasmontana (20 reais a unidade). Teresa Morgado, a dona da casa, aliás, é natural de Sendim, uma vila com cerca de 1370 habitantes localizada em Miranda do Douro, Trás-os-Montes, norte de Portugal. Nas noites de quinta a sábado, costumava receber a companhia da irmã, Glória de Lourdes, para interpretar clássicos do fado, outrora famosos na voz de Amália Rodrigues.
Em virtude da pandemia, os concertos estão suspensos. Mas o aroma do azeite que tempera o bacalhau e o polvo a lagareiro (respectivamente 100 e 150 reais, para duas pessoas) continua a alegrar os paladares da freguesia e dos raros torcedores da Associação Portuguesa de Desportos, uma instituição paulistana, que merece reviver seus dias mais gloriosos.
Taberna do Cais do Porto. Rua Comendador Nestor Pereira, 33, portão 3, Canindé, São Paulo.
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