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Boteclando

Um bar, uma mesa de sinuca e o primeiro show de Elis Regina em São Paulo

Miguel Icassatti

02/11/2020 14h50

Em foto de 2009, mesas na calçada do bar Papo, Pinga e Petisco na Praca Roosevelt no centro de Sao Paulo. (Foto: Lalo de Almeida/Folha Imagem)

Dias atrás estive no lançamento de uma marca de bebidas num bar na região central de São Paulo. Era um evento com acesso controlado, apenas para convidados, de modo que topei o compromisso – confesso, ainda não me sinto confortável em frequentar bares. Alguma tranquilidade virá, espero, quando tivermos a vacina contra o covid-19.

Além de degustar bons coquetéis, foi a chance de socializar um pouco e de reencontrar algumas pessoas depois de mais de meio ano de isolamento. De modo que não pude deixar de atender ao chamado de um amigo ali presente: "Meu, vamos tomar uma cerveja em algum boteco aqui perto?". Educadamente, aceitei o convite e seguimos a pé debaixo de garoa. Dobramos a esquina à direita e o primeiro boteco que avistamos foi o Papo, Pinga e Petisco, na Praça Roosevelt.

Inaugurado em 2004, esse bar ocupa o mesmo prédio em que, nos anos 1960, existiu a boate Djalma's, onde a cantora Elis Regina fez seu primeiro show em 1964.

Papo, Pinga e Petisco: onde está a mesa de sinuca ficava o palco do primeiro show de Elis em São Paulo / Fotos: Miguel Icassatti

Aqui convém abrir um parêntese histórico: naquele tempo, o centro de São Paulo era pujante, nele encontravam-se instaladas as sedes de bancos, grandes empresas, jornais e emissoras de TV, a exemplo do Estadão e da TV Excelsior; cinemas e teatros de rua viviam cheios; e os melhores bares e casas noturnas da cidade, onde reunia-se e se espraiava a nata de nossa música, podiam ser percorridos a pé.

Na região da Praça Roosevelt, que hoje é um importante e resistente reduto do teatro alternativo na cidade, ficavam A Baiúca e o Djalma's que, por sua vez, veio substituir o Farney's, um bar que pertenceu ao cantor e pianista Dick Farney, um dos maiores intérpretes do gênero samba-canção, influenciador da bossa nova e um dos grandes músicos da noite.

PPP e a jukebox: prédio histórico para a MPB

Num texto escrito em 18 de janeiro de 1997 para o jornal Folha de S. Paulo, o produtor musical e jornalista Walter Silva, o Pica-Pau, falecido em 2009, relembra a estreia de Elis em palcos paulistanos:

"A primeira vez que Elis veio a São Paulo foi para divulgar seu LP de estréia ("Viva a Brotolândia"), em 1961. (…) Sua segunda estada, um pouco mais longa, foi em 1964, quando, indicada por Sílvio César, na época o melhor cantor romântico da noite, participou ao seu lado de uma curta temporada na boate 'Djalma's' – que havia sido do pianista e compositor Djalma Ferreira.

"O Djalma's acabava de ser comprado por Luís Vassalo, homem da noite que tinha também uma rede de lojas de discos em São Paulo. Vassalo pediu ao produtor de shows Solano Ribeiro, ao jornalista Arley Pereira e ao seu gordíssimo sócio Teco que cuidassem do assunto.

"Solano, sempre um "expert" no assunto, sugeriu Sílvio César, que, com aquele seu jeitinho calmo de falar, indicou uma gauchinha que fazia muito sucesso no Bottle's, no Beco das Garrafas, no Rio.

"A verba era curta e Elis veio ganhando cinco cruzeiros por noite, mais hospedagem no Hotel Marrocos, que ficava na esquina da Praça Roosevelt (ao lado da boate) e ao lado do canal 9, TV Excelsior."

Autor de Nada Será Como Antes, biografia de Elis Regina lançada em 2015, o jornalista Julio Maria confirma a história e acrescenta: "O Djalma's também foi onde Déa Silva, mulher de Pica-Pau, viu um rapaz negro muito charmoso no mesmo palco e sugeriu ao marido, um importante nome no cenário musical de então: 'por que você não o convida para se apresentar com Elis?'. Em 1965, a dupla viria gravar o disco Dois na Bossa."

No Papo, Pinga e Petisco (PPP), o exato ponto ocupado pelo palco do Djalma's dá lugar a uma mesa de sinuca, numa área anexa, à direita e ao fundo do comprido e estreito salão com teto baixo e decoração de antiquário. Um bar aconchegante, sem dúvida, o PPP segue dando à música um papel importante: na pequena loja de discos de segunda-mão (LPs) que funciona ali, é prazeroso dedilhar as capas de discos à venda. Em meio à decoração de bricabraque, destaca-se também uma jukebox.

O cardápio traz porções triviais, como a de salsichão (40 reais) e a de bolinho de mandioca com carne seca (32 reais), 22 marcas de cachaça, entre elas a mineira Claudionor (12 reais a dose) além de cervejas (Heineken a 15 reais). Mais do que pinga e petisco, o PPP tem história. Merecia ser tombado.

Vai lá:

Papo, Pinga e Petisco. Praça Roosevelt, 118, centro, São Paulo.

 

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.