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Boteclando

10 receitas que provam que São Paulo é a cidade que come de (quase) tudo

Miguel Icassatti

29/01/2021 04h00

Houve um tempo em que o paulistano era chamado de caipira, e não era por seu sotaque ou por causa das roupas que vestia. "O general Couto de Magalhães registrou em meados do século XIX manifestações satíricas de estudantes contra o hábito alimentar das elites de São Paulo, que comiam içá e cambuquira e, por isso, eram chamados de caipiras", contam o sociólogo Carlos Alberto Dória e o chef Marcelo Corrêa Bastos no ótimo livro "A culinária caipira da Paulistânia – A história e as receitas de um modo antigo de comer" (Editora Três Estrelas, 2018).

Quase dois séculos depois, os sotaques do paulistano são muitos, assim como a moda vista pelas ruas de São Paulo é uma miríade de estilos – será que existe um jeito paulistano de se vestir? A pensar.

Na alimentação, na gastronomia, a cidade que completou essa semana 467 anos deixou para trás qualquer complexo de caipiranidade. Em São Paulo, bebe-se, come-se e faz-se de tudo com os ingredientes disponíveis; paulistanizam-se receitas, melhorando-as ou piorando-as, tudo depende do ponto de vista.

O barman Paulo Leite, por exemplo, foi o campeão do segundo campeonato brasileiro de Rabo de Galo em 2018, a colocar entre os ingredientes de sua receita uma içá, a "rainha da formiga saúva". Fui jurado desse certame e, além de degustar o RG campeão, pude comer a formiga e perceber seu sabor salgado, com toque cítrico, de limão siciliano, conforme contei neste texto.

O Rabo de Galo, aliás, é uma das 10 maravilhas da culinária e da botecagem paulistanas, nascidas em São Paulo ou trazidas de outras partes do país e do mundo ao gosto de quem vive na cidade. Porque, como escreveu a cearense Raquel de Queiroz em 1954: "nunca houve recanto do Brasil que fosse mais Brasil do que São Paulo":

  1. Rabo de galo:

A mistura de cachaça com vermute foi criada nos anos 1950, quando a indústria italiana de bebidas Cinzano chegou a São Paulo. Para popularizar o consumo de seu produto, a empresa inventou o drinque e atribuiu-lhe o nome que alude à tradução de coq (galo, do francês) e tail (rabo, do inglês)

  1. Sanduíche de mortadela:

Sanduíche de mortadela do Mortadela Brasil, no Mercado Municipal: 300 gramas de recheio / Foto: Airton Gontow

O sanduíche de mortadela não foi inventado em São Paulo, certamente, mas o exagero com que é preparado nos bares do Mercado Municipal Paulistano me faz lembrar da crônica Adamastor e São Paulo", do grande Antônio Maria: "Sobre São Paulo (…) os homens, mesmos se ser grandes, se chama m de Carlão, Luizão e Zelão". Nada mais paulistano do que os aumentativos e as 15 fatias que, em média, compõem os 300 gramas do sanduíche de mortadela do Hocca Bar, do Mortadela Brasil e do Bar do Mané, entre outros.

  1. Coxinha com catupiry:

    Coxinha do Frangó / Foto: divulgação

Talvez existam tantas receitas diferentes de coxinha quanto são as pet shops ou as padarias em São Paulo. Mas não há dúvida de que a brilhante ideia de adicionar uma fina camada de catupiry entre a massa e o recheio de sua coxinha, fez do FrangÓ, na Freguesia do Ó, um dos endereços obrigatórios para os fãs do salgado.

  1. Cachorro-quente (aka dogão):

É certo que no espaço que sobra entre as duas bandas do pão e a salsicha cabe de tudo um pouco: molho vinagrete, maionese, ketchup, mostarda, batata palha, ervilha, milho, carne moída. Mas dogão paulistano raiz que se preze pode dispensar boa parte desses itens listados acima para dar espaço, no lugar, um bom purê de batata. Além de agregar sabor, o purê, que deve ser colocado por último, tem a função de evitar que os outros ingredientes caiam do lanche e lambuzem a mão da gente. Nunca vou esquecer no dogue do Serginho, que eu comia quase todos os dias na Rua Monte Alegre, na porta do prédio velho da PUC, nos meus tempos de estudante de jornalismo.

  1. Chipa paraguaia:

A moda é recente. Salgado típico do Paraguai e da fronteira desse país com o Mato Grosso do Sul, a chipa começou a aparecer nas padarias paulistanas há uns quatro, cinco anos. Esse biscoito feito com queijo e polvilho tem, originalmente, consistência mais massuda, às vezes farinhenta. Mas em São Paulo foi paulistanizada: tem uma consistência mais próxima a de um pão de queijo genérico e perdeu a adição da erva-doce, o que é uma pena.

  1. Caipirinha de vodca

Certa vez, o barman do La Bourse, o lindo e antigo bar da Bolsa de Valores de São Paulo, contou-me que, nos anos 1970, muitos bares recusavam-se a preparar a caipirinha com cachaça. Tinham vergonha da qualidade do destilado, segundo ele. Razão pela qual muitos trocaram a aguardente pela vodca. Felizmente a oferta de marcas e estilos de cachaça nos bares paulistanos é ótima. Só resta aos barmen engavetarem a réplica ainda comum quando o cliente lhes pede o drinque: "com vodca ou cachaça?". Caipirinha é sempre feita com cachaça.

  1. Arais:

Arais do Carlinhos / Foto: Leo Feltran

É das coisas mais saborosas que as cozinhas paulistanas já inventaram. No caso, a cozinha do restaurante Carlinhos, na divisa do Brás e do Pari. Trata-se de um sanduíche composto de uma cafta prensada no pão árabe, levada à chapa. Foi criado por acaso pelo saudoso Missak Yaroussalian, ao fim de um dia de expediente. Sozinho na cozinha do seu pequeno restaurante, então na Rua Miller, ele improvisou um lanche com o que tinha mais a mão: justamente um pão e um pouco de carene temperada para cafta. Levou à chapa e assim nasceu o arais.

  1. Joana D'Arc:

É uma calabresa flambada na cachaça, geralmente servida com rodelas de pão e molho vinagrete. A receita teria sido criada n'A Juriti (Cambuci) mas é bem feita também no Jabuti (Vila Mariana), no Elídio Bar, da Mooca, ô meu.

  1. Sushi de salmão:

Esta quem me contou foi o Jun Sakamoto, célebre sushiman: no Japão não se come sushi de salmão. Trata-se de uma invenção paulistana. Segundo ele, a grande diversidade de peixes na costa japonesa permite o emprego de diversas espécies em sushis e sashimis – inclusive do fugu (baiacu). Sakamoto disse-me que os orientais preferem grelhar o salmão, em vez de servi-lo cru. Encontrado sazonalmente na costa de Hokkaido, no norte do Japão, o salmão migra do oceano para os rios, onde acaba contraindo impurezas. Salvo o que acontece em algumas regiões isoladas, em que se consome sushi de carpa, o japonês não come peixe cru de água doce.

  1. Pizza de tudo:

A pizza chegou ao Brasil com os imigrantes vindos de Nápoles, no sul da Itália, poucas décadas depois de seu surgimento, em 1889, quando o pizzaiolo Raffaele Espósito ofereceu à rainha Margherita uma cobertura feita com mussarela, tomate e manjericão, em alusão às cores da bandeira da Itália. Se naquele país a pizza é um prato passível de adaptações regionais, em função dos ingredientes disponíveis – aliche, atum e frutos do mar cobriam os discos da região mais mediterrânea, enquanto nos bosques e montanhas da Toscana e do Piemonte a pizza ganhou o sabor do funghi, conforme lembra o italiano Vincenzo Buonassisi em O Livro da Pizza –, em São Paulo come-se pizza de tudo o que é sabor, com massa de fermentação natural ou não, com borda recheada e espessura mais fina, média ou grossa, assada em fornos a lenha, a gás ou elétrico. Mas o que é importante: com ketchup, nunca. Jamais.

Sobre o autor

Miguel Icassatti é jornalista e curador da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco. Foi crítico de bares das revistas “Playboy” (1998-2000) e “Veja São Paulo” (2000), editor-assistente e um dos fundadores do “Paladar/jornal O Estado de S. Paulo” (2004 a 2007), editor dos guias “Veja Comer & Beber” em 18 regiões brasileiras (2007 a 2010), editor-chefe do Projeto Abril na Copa (Placar) e da revista “Men’s Health Brasil” (2011 a 2014). É colunista de “Cultura de Boteco” da rádio BandNews FM e correspondente no Brasil da “Revista de Vinhos” (Portugal).

Sobre o blog

Os petiscos, as bebidas, os balcões encardidos, as pessoas e tudo que envolve a cultura de boteco e outras histórias de bar.