A morte do Genésio: um bar se vai mas sua memória deve ficar
Houve um tempo em que éramos felizes e sabíamos, sobretudo nós, jornalistas. Era uma época em que passávamos muito mais do que as 44 horas semanais regulamentares nas redações, em jornadas de 12, 13, 15 horas diárias. Não ganhávamos hora extra, no máximo uma pizza no pescoção, que é como a gente chama a noitada de sexta-feira no trabalho a fim de adiantar a edição dominical e a de segunda-feira do jornal.
Nas noites úteis, por assim dizer, saíamos da redação diretamente para o boteco. Nos meus tempos de jornal e de revista, muitas vezes meu destino era o Filial, na Vila Madalena, às 2 ou 3 da manhã de uma quarta ou quinta-feira, e ali encontrava o que comer (caldo de feijão seguido de uma espetada de alcatra com salada de batata), o que beber (chope, muito chope) e o que conversar, com Jefão, Paulo, Fernando, entre outros véios de guerra sempre a postos. Comprava o exemplar da revista Ocas diretamente da mão do Wilson e, se meu salário tivesse entrado na conta, talvez levasse para casa um vinil do Cartola, do Sinatra ou do Jimi Hendrix, das mãos de outro mascate da noite, o… péra, agora me confundi: Wilson era o vendedor de discos ou da revista Ocas?
A pausa para ir ao banheiro e ativar a circulação dos membros inferiores, no Filial, rendia às vezes uma esticada ao Genésio, do outro lado da rua, para conferir o movimento ou convidar algum comparsa à nossa mesa. Esse vaivém não provocava maiores problemas porque o Genésio e o Filial pertencem aos mesmos donos. No caso do Genésio, pertencia, porque a pandemia o matou.
Segundo uma reportagem do Guia da Folha de 18 de março, em fevereiro o imóvel que abrigou o Genésio por quase duas décadas foi colocado para alugar. Passei muitos bons momentos no Filial e no Genésio (aqui eu preferia me acomodar em uma das mesas montadas na calçada, mais convidativas. Cruzei, num ou noutro, com gente como os irmãos Raí e Sócrates, Billy Duff (guitarrista do The Cult, depois de um show da banda ao qual eu, por acaso, havia ido horas antes) e Joyce, a cantora.
Genésio e Filial foram dois casos raríssimos, se não forem únicos, os quais, desde a declaração de pandemia, mantiveram-se fechados (exceto por uma breve tentativa de oferecer um serviço de delivery), em respeito aos clientes e aos próprios funcionários, cerca de quarenta, muitos deles veteranos e, portanto, nos grupos de risco.
Ontem um amigo compartilhou no grupo do zap a notícia que outro clássico paulistano também havia batido as botas, no caso, o Finnegan's Pub, em Pinheiros. Fui checar no instagram @finnegansoficial e li um post que dava conta de que a casa estaria "fechada por tempo indeterminado". Mandei mensagem pelo próprio app e do lado de lá me disseram que o bar seria reaberto hoje para retirada de produtos no local. O post que eu li havia sido apagado e outros dois já estão no perfil, um deles informando que "estaremos funcionando através de delivery/retirada de quarta a domingo, de 12h30 às 20h.
O Finnegan's também me traz boas memórias, inclusive uma não-vivida, que virou anedota entre os amigos, um perrengue impublicável, em respeito ao próprio bar. Nos bons anos 1990, o Finnegan's era o único pub de São Paulo no qual podia-se beber um irish coffee de verdade, com creme de leite batido na hora. Era um tempo em que a cidade tinha poucos e bons balcões nos quais os barmen preparavam drinques clássicos impecáveis, casos do Bistrô (dry martini e bullshot feitos pela dupla Derivan e Souza), do Pandoro (caju amigo do Guilherme, com gim, faz favor) e do Supremo (ah, o manhattan do Rocha).
Torço para que o Filial e o Finnegan's não se juntem tão cedo ao panteão desse saudosos endereços. E não podemos deixar que as memórias de bar se esvaiam. Refiro-me aqui à lembrança da experiência do que é estar num bar, do que é chamar o garçom, pedir um drinque ao barman, petiscar, mandar um bilhete ou escutar a conversa na mesa ao lado.
O mesmo vale para as redações, que elas voltem a encher-se e tragam boas notícias. Precisamos delas, assim como precisamos deles, os bares.
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